Resgates da Mulher Baiana para a Mulher Advogada: estilhas da Primeira República para atualidade

A condição da mulher no período da Primeira República torna-se impressionantemente atual, quando detectadas na sociedade contemporânea, vivências sobre mesmas problemáticas no seu entorno - aborto, infanticídio, abandono de recém-nascidos, estupro e feminicídio. Embora tenha ocorrido quebra de paradigmas para determinado segmento das mulheres economicamente mais favorecidas e, apesar das inúmeras normas constitucionais programáticas de igualdade social e políticas públicas de proteção à mulher, a condição feminina, em especial, a da mulher pobre, seja nas grandes capitais ou nos interiores desta grande nação, é a mesma, senão pior.

 

Durante a Primeira República (1890 a 1940), a economia brasileira permaneceu centrada na produção cafeeira, contando, porém, com o avanço do processo de modernização e diversificação das atividades econômicas. O desvio dos interesses econômicos para o eixo Centro-Sul, deixou à latere da “revolução industrial” regional. A Bahia viu a necessidade de incrementar a sua cultura, de modernizar e higienizar a cidade e reorientar as instituições, aspectos que provocaram mudanças nas alternativas de sobrevivência familiar. A mulher ocupou papel fundamental nesse processo.

 

Os novos hábitos da cidade modernizada fomentaram a presença da mulher no espaço público, contando com a sua presença em trabalhos como os de costura, nos tabuleiros, como ganhadeiras, no pequeno comércio. Aliás, o fato de ser mulher atuando nas atividades do comércio ambulante clandestino tornava mais fácil a burla à ação fiscal. No espaço privado, a mulher pobre adequava-se ao trabalho como empregada doméstica, cozinheira, arrumadeira e amas-de-leite.

 

O projeto modernizador do espaço público estava sendo preparado para receber as mulheres na rua. Entretanto, as mudanças nas mentalidades não acompanhavam tão rapidamente. A presença da mulher solteira no espaço público incomodava, e aquelas que, por dever de ofício, apareciam publicamente, a exemplo das enfermeiras, telefonistas etc., possuíam o seu próprio código de conduta, para não serem confundidas com as “mulheres de rua” e que passava pelas austeras vestimentas e uniformes pesados.

 

Para as mulheres da época, a relação afetiva com os homens baseada no amor e erotismo, sempre resultara em tragédias, permeadas pelo signo do machismo e pela legislação criminal arraigadamente preconceituosa. Se por um lado crescia a abertura para o amor romântico, o assédio e defloramentos comprovados entre 1900-1926, são comuns às mulheres de situação social precária. Costureiras, operárias, domésticas e sem profissão encabeçavam as queixas-crimes contra seus ofensores, e não raro sujeitavam-se à reparação pelo casamento, como previsto pela legislação da época.

 

Os limites impostos à maternidade das mulheres pobres eram medidos pelas frequentes práticas abortivas, infanticídio e abandono das crianças. A Roda dos Expostos consistia na solução para evitar os óbitos, tanto para as senhoras de leite que queriam esconder a filiação espúria, quanto das mulheres pobres e escravas que eram obrigadas a deixar seus filhos na Roda para que senhores as alugassem como amas de leite.

 

O título dado ao livro Alberto Heráclito Ferreira (Quem pariu e bateu, que balance! Mundos Femininos, maternidade e pobreza: Salvador, 1890-1940) e do qual se extrai boa parte de dados históricos, adequa-se, exatamente, à responsabilidade familiar que foi imposta à mulher como o ônus de sua liberação. Se quisesse ter liberdade sexual, então, por sua conta e risco, sofresse as consequências de uma gravidez indesejada e portasse o título de mãe solteira.

 

As consequências de uma sociedade escravista e exploradora da condição feminina, retratada no processo histórico da Primeira República diz muito às advogadas baianas; muito do que ainda é preciso lutar para a equidade nas relações de gênero; para garantir-se nesse contexto geográfico diverso e especialmente plural da gênese baiana.

 

Variados são os vieses da contemporaneidade que permeiam os avanços obtidos nas relações sociais, de trabalho e afetivas da mulher e que contam com a ascensão e a permanência da mulher advogada nos quadros paritários da OAB baiana, para honrar a perspectiva de sustentabilidade geracional de outras tantas, pois como dito por Clarice Estée, psicóloga mexicana “uma mulher, se tiver sorte, sempre encontrará outras para aprender e lhe dar suporte”.

 

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Cristiane Guimarães, Procuradora do Estado da Bahia, presidente da Associação dos Procuradores do Estado da Bahia (APEB) e segunda vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores de Estado e do Distrito Federal (ANAPE)