Não será possível recusar-se a ser vacinado

Não nutra a expectativa de que a disposição contida no art. 15 do Código Civil, assegurador de que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”, possa dar amparo legal à recusa do cidadão a tomar a vacina anti-COVID19, caso essa venha a ser aplicada em caráter obrigatório e geral por determinação das autoridades médicas e sanitárias.

Por motivos realistas e simples, que explico com tecnicalidade e animus jocandi, esse dispositivo certamente perderá sua eficácia prática! Veja o que farão nossos donos do poder estatal.

A primeira opção será mediante Projeto de Lei, por via do isento, honesto, independente, eficiente e operoso CONGRESSO NACIONAL (não ria), por iniciativa legislativa parlamentar própria, que tramitará em regime de urgência urgentíssima (quando eles querem tudo fazem, o Regimento Interno o permite!). O objeto desse PL será a derrogação de tal artigo exclusivamente quanto ao efeito que convém. Fá-lo-á, como diria o mesoclítico e honestíssimo Michel Temer (não ria de novo!), mediante a inserção de um parágrafo único ao dito art. 15, contemplando uma exceção genérica ao direito de se opor à vacinação obrigatória, exclusivamente nos casos de pandemias, ficando assim facilmente enquadrada a patologia Covid19. Isso para “defesa da vida de terceiros integrantes da totalidade da população” (lindo, solidário e incontestável, daí ser esta uma das justificativas do projeto de lei), abonando uma simples alteração legislativa no “interesse público que à lei cumpre preservar e defender” (beleza, não há quem seja contra, se verdadeiramente for esse o objetivo legiferante!).

A segunda opção para matar o art. 15, mesmo sem contaminá-lo de COVID19 (risos!), será pela via jurisdicional, através do provecto, sapiente, justo, patriótico e respeitável (não vale rir de novo, porque agora corre o risco de ser preso!) SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, por decisão de seus ilibados e imparciais Ministros, baseando-se no “livre convencimento”, na “ciência e consciência” (mantenha-se sério, sem risos, por favor!).

Por essa alternativa, sem necessidade de qualquer alteração legislativa prévia no citado art. 15, bastará que a Augusta Corte aplique a sua já tradicional interpretação moduladora dos efeitos a tal dispositivo, para suspender seu âmbito de abrangência e sua eficácia temporal, em razão da gravidade da pandemia e por considerar inadequada a interpretação genérica e literal de tal preceito, no contexto atual vivido pela humanidade. A hermenêutica sistemática do ordenamento jurídico não é a mais científica?

Vamos em frente
Dirá, ademais, o respeitável Ministro Relator, do alto de sua sabedoria perene: é consabido que inexistem direitos individuais absolutos, máxime contra os direitos coletivos (que lindo, ninguém poderia ser contra!). Como se não bastasse tal incontestável fundamento, os togados ainda justificarão em seus votos essa hermenêutica ___ vista pelos maledicentes como prática de ativismo judicial ___ no fato de inexistirem os efeitos maléficos dessa patologia ao tempo do início de vigência do atual Código Civil de 2002 e ainda explicará o Relator que tal disposição não tinha regra correspondente no Código de 1916, conquanto este tivesse índole até mais individualista que o atual. Modulação dos efeitos portanto plenamente justificada!

Um pobre estudante de Direito que assistiria ao julgamento no plenário questionar-se-ia: a lei também está sujeita à cláusula rebus sic stantibus? Pensaria lá com seus botões que os seus professores falaram tanto em segurança jurídica e intangibilidade da lei, mas nada disseram sobre o novel “casuísmo judicante circunstanciado”, designação pela qual apodou de logo a postura tribunalícia que ali se exteriorizava. Ato contínuo, como se lendo o pensamento do jovem espectador daquela tragicomédia, o perlustrado e ínclito Relator (não ria, por favor!) ressaltaria: é claro que, se o pacta sunt servanda se flexibiliza no âmbito privatístico dos contratos, quando sucedem fatos supervenientes, extraordinários e imprevisíveis, trazendo a lei vigente desvantagens ao bem comum, de âmbito publicístico, portanto, inquestionavelmente mais relevantes que a desvantagem das partes no desequilíbrio contratual, maior razão assiste para o Judiciário flexibilizar a aplicação da lei em circunstâncias símiles como a apreciada. E o remédio para isso, sem revogar a lei, completaria S.Exa, é a modulação dos seus efeitos, que somente a Augusta Corte tem saber e poder para aplicar. Tout Court,pensou o Ministro. “Curto e grosso”, pensaria o estudante!

Mas não se esgota aí o discurso relatorial do culto Relator. Para silenciar de vez a imprensa independente, tida por resmungona, o venerando acórdão ainda ressaltará que ao Judiciário, com autonomia e altivez, é dado aplicar a lei conforme o dispositivo do chamado sobredireito ou superdireito, insculpido no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Dec.Lei 4.657/1942 – LICC, com as modificações da Lei 12.376/2010), segundo o qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Só não dirá que esse preceito contém conceitos abertos, temporal e espacialmente, a serem preenchidos pelas circunstâncias várias, que vão das históricas, geográficas e científicas até as ideológicas e políticas do julgador e seu momento, pois, como disse ORTEGA Y GASSET, “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”.

Muito bem, deixando de lado as “Meditações do Quixote” por não convir ressaltá-las, de quebra e por derradeiro, visando dotar o decisum de eficácia plena, o venerando acórdão conferirá a esse aresto contundente ___ na prática derrogatório do questionado direito, sem nada retirar ou pôr no Código Civil __ o efeito vinculante de “repercussão geral”, com o que estaria morto e sepultado o suposto direito de não ser vacinado contra a COVID 19, seja de que nacionalidade for a vacina. Pouco importando também se ela agirá apenas para evitar que o vacinado contraia a funesta virose, se promoverá modificações genéticas gravíssimas na espécie humana, ou, como já se cogita nas discussões internacionais, se ela implantará sorrateiramente um chip líquido, para o controle vindouro de corações e mentes dos futuros quase humanos.

Pronto. Essa será a síntese fundamentadora do voto do Relator, a que aderirão, à unanimidade, os meritíssimos togados do STF na sua composição plena, até porque nenhum terá coragem para divergir e depois morrer por um coronavírus que ataque, por exemplo, a turbina de um jato em que esteja a viajar, imagem que todos simultaneamente evocaram em suas mentes, lembrando-se da misteriosa morte, em janeiro de 2017, do saudoso colega Teori Zavascki, primeiro relator da ruidosa, odiada e controversa Operação Lava Jato.

Com essa inspiração e algum temor, encerrar-se-á (olha Temer de novo!) a sessão para que os colendos Ministros, com suas vetustas e negras vestes talares, recolham-se ao vestíbulo de descanso da Casa, onde passarão, por uma hora, antes de retomar a pauta, a tomar vinhos certificados envelhecidos acompanhados de acepipes de lagostas à Thermidor, como é de praxe e comprovam as licitações para aquisições de víveres daquele quartel sem armas, senão as armas da ciência, da bondade e da quase veneranda santidade.

Seguir-se-ão então, em todos os rincões da brasilidade submissa, as comemorações dos políticos, da imprensa comprometida e dos empresários que estão lucrando com a pandemia, incluindo a valorosa indústria farmacêutica mundial!

Ou será que alguém ainda tem a ingenuidade de acreditar na eficácia do art. 15 do Código Civil, se nem aquele imaginário estudante presente ao julgamento acreditaria?

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Paulo Borba Costa – Advogado – Ex-Professor da Faculdade de Direito da UCSAL – Ex-Conselheiro da OAB/BA e Ex-Membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/BA – Ex-Vice-Presidente da Associação dos Procuradores do Estado da Bahia – APEB BA – Procurador do Estado da Bahia aposentado.

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Este texto é de total responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, caso exista, a opinião da Associação dos Procuradores do Estado da Bahia.