Politicamente correto: a intolerância dissimulada

 

O “politicamente correto” é uma censura seletiva convertida em seita, que, com capa de diversidade de pensar, não passa de um autoritarismo ideológico criador de espaços seguros, para que os patrulheiros da “verdade absoluta” a preservem de contestações, apodando como ofensiva e desprezível qualquer ideia, conduta ou livre pensar que se não compadeça com seus postulados ideológicos. Sendo assim, é um obscurantismo muito próximo do medievo, algo como um retorno, em plena pós-modernidade, de uma santa inquisição difusa do pensamento, contra qualquer “heresia” que ouse contrariar a postura “politicamente correta”.

 

Criticamos o fanatismo islâmico, mas, de certa forma, o “politicamente correto” não passa de uma postura muito próxima da intolerância quase mística, mitigada por uma pseudocapa de liberdade, dotada de metodologia persuasiva, falsamente racionalista e mais eficiente e consentânea com os valores pós-iluministas da civilização ocidental, para assim melhor dissimular e mais rápida e abrangentemente se disseminar. Os arautos do “politicamente correto”, senhores do “bom-mocismo vitimista”, são os novos jacobinos do terror ideológico, sem recurso à violência física da guilhotina ou do paredon, mas sim valendo-se da violência moral, que incute “autocensura” generalizada, como meio de não se ser apodado de insano, apedeuta, inexperiente ou superado. Enfim, é a mais evidente prova da vitória do totalitarismo do pensamento único sobre a inteligência, o que acaba por ferir de morte o racionalismo embasador da nossa civilização.

 

Uma incongruência essencial muito frequente nesse agir reside no fato dos cultivadores dessa prática social não manterem coerência entre o discurso e as ações, sobretudo quando a dissimulação não logra capturar inteiramente algum interlocutor independente, logo segregado e rotulado. Nesse caso vociferam e afrontam quem quer que sustente uma divergência, furtando-se ao debate, com menoscabo do ponto de vista discordante, consequentemente negando respeito à diversidade que o seu discurso de virtuoso ”bom-mocismo” apregoa defender.

 

Diferentemente do que sucede em uma sociedade comandada por regimes de governo totalitários tradicionais __ seja fascista, seja comunista __ em que o pensamento único é garantido por um aparato repressor de força física estatal, a ideologia do “politicamente correto”, numa sociedade dita aberta, com regime e sistemas de governo de base liberal democrática, é mais eficiente. Isto porque a “autocensura” e os meios subliminares de alijamento e desqualificação dos “incorretos” politicamente cumprem seu papel uniformizador do pensamento de modo imperceptível e até com foros acadêmicos ou de ciência, dotados de um léxico enganosamente sedutor. Parodiando a lição de Lacan para a psicanálise, a sustentação do estereótipo “politicamente correto” se faz mediante a criação de uma realidade simbólico-imaginária diferenciada do real e que visa a reconstrução conveniente e única de um outro real, que é incutido nas mentes para afetar opiniões, desejos e emoções.

 

Agora, então, na era tecnocientífica informacional, com preponderância das redes sociais virtuais, os controladores das mídias podem manipular tudo, de sorte a se não mais distinguirem fake e verdade, sem se falar nas técnicas de monitoração georreferenciada digital da locomoção, do reconhecimento facial e de outras formas de rastreamento, inclusive dos espaços intelectuais ocupados por “corretos” e “incorretos” politicamente. Para essa vigilância oculta e difusa valem-se dos softwares, chips e devices, até mesmo dos telemóveis, que bem já se prestam a múltiplas formas de controle dos corações e mentes “politicamente incorretos”, de modo imperceptível e até ameno para alguns ingênuos.

 

Vale dizer, tudo é feito sem exteriorização da violência moral, embora em certos cenários, para reforçar a hegemonia controladora, haja recursos a anátemas e imprecações até contra evidências históricas contrárias ao “politicamente correto”, quando não até mesmo apelando para um falso humor, motivador da empatia conversora dessa pregação num verdadeiro culto. Tal sucede, obviamente, porque os mecanismos de controle e destruição da alteridade do pensamento são subjetivos e ajustados à demanda individual e social por sucesso, por trabalho ou emprego, por ocupação de espaços sociais, enfim, por aceitação e até por “bom-mocismo”, porque ou se enquadra no padrão, ou se é convertido em um pária, sendo “sempre o da mansarda, ainda que não more nela” e estará sempre esperando que lhe abram “a porta ao pé de uma parede sem porta”, para usar uma metáfora do vate Fernando Pessoa, no seu insuperável poema Tabacaria.

 

A institucionalização dessas práticas de controle pelo “politicamente correto” é imperiosa para o pleno êxito da dominação, é bom que se saiba. Tais práticas se efetivam, não só pela omissão normativa proibitória delas, em acato a princípios garantidores caros e indiscutíveis da liberdade __ que indiretamente a estimulam, e que acabam sendo negados na prática ___ como também se apropriam dos campos cognitivos e até do afetivo, exteriorizando-se no discurso do “bem” e do “certo” que convém. E tal discurso trafega pelas categorias ontológicas de sujeito, verbo e complementos, mas também ____ e aí reside o seu braço mais forte e dissimulado __ pelos signos representativos, explícitos, implícitos, sugeridos ou ocultos, que se tornam assim, não somente úteis, mas essenciais à organização e efetividade do seu desempenho, pela síntese dissuasória que encerram.

 

Parodiando o pensamento de Marcuse, essa seria também uma nova forma eficaz de controle social. Certamente sem os custos da guilhotina e do paredon. E os incautos ainda pensam que estão pensando em ambiente de liberdade real, mas que não passa de liberdade dissimulada, um cenário estático e antidialético, no qual vigora o esquecimento, deliberado para uns e imperceptível para a maioria, de que o embate de ideias e a diversidade de pensares foram os responsáveis pelo progresso da humanidade para chegarmos aonde chegamos.

 

Em suma, a pauta “politicamente correta” não passa de um retrocesso, um obscurantismo deliberado, que transforma o homo sapiens em burlesco símio, ainda que se jactando de evoluído pelo domínio da técnica material em inúmeros setores do conhecimento e das artes, que passam a ser instrumentos para melhor exercer sibilino controle e eficaz censura sobre o livre pensar. É este o cenário propício ao domínio futuro da inteligência artificial total, que em sua plenitude comandará autônomos humanos convertidos em seres irracionais.

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Paulo Borba Costa – Advogado – Ex-Professor da Faculdade de Direito da UCSAL – Ex-Conselheiro da OAB/BA e Ex-Membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/BA - Procurador do Estado da Bahia aposentado.