O Cotó e a Anta

Título: O Cotó e a Anta
Data: 10/07/2020

Era uma vez um cotó que decidiu dominar o mundo. Achava-se acima de tudo e de todos. Um ser excepcional. Um Deus. Um Super-Homem. Imbatível. Indomável.

Reuniu a sua turma e partiu para a empreitada. Cabeça erguida, focou no objetivo, e foi embora.

Tudo estava indo certo. Derrubou o primeiro vilão, um outro nordestino, mais bonito, elegante, esportista, mas um amador. Venceu o primeiro round, o cotó. Depois disso nada o impedia, não havia barreiras na sua frente nem obstáculos que não pudesse, com a sua aguçada esperteza, ultrapassar.

Ganhou o trono, afinal. Envaidecido, se autodenominou o Pai dos Pobres e Desesperados, uma espécie de Moisés, indicando o caminho da salvação, a passagem secreta do Mar Morto.

Tudo estava dando certo. Tinha planos de dominação eterna do “seu” reino. Tinha um fila de asseclas que ficariam à frente dos trabalhos mais ingratos e ele articulando nos bastidores, mas mantendo o seu reinado do jeitinho como imaginara, sem a intervenção de ninguém, nem mesmo a divina, visto que ele era o próprio Deus, ora bolas!

Da forma como andavam as coisas, até um poste poderia fazer o papel de governante, pois os dominados não notariam qualquer alteração, e assim o fez.

Mas, de repente, alguns fantasmas começaram a insistir em circular pelos ares e alguns assuntos palacianos a tomarem forma de pássaros e alçarem voo em direção ao infinito. O Rei cotó começou a ficar preocupado. Querem me fuder!, falou ele com o habitual requinte para seus capachos, em especial para a sua anta de estimação.

Então o povo ficou sabendo de um governante de classe inferior, uma espécie de síndico de um vilarejo que foi covardemente assassinado. Havia também notícias de que um grupo de nobre palacianos arrecadavam fortunas e dividiam entre si, dando as migalhas para opositores acalmarem as suas cóleras e a vontade de causar rebelião no reino do poderoso cotó. Onde já se vira isso!

O cotó, como sempre, de nada sabia e para provar que era verdade, oferecia seus subalternos como oferenda e os pobres coitados, nem tão pobres assim, eram sacrificados e o sangue era oferecido ao king que o bebia com satisfação, mostrando para o povo a sua boca suja - perdão, mais suja ainda, com o fluido dos “sacanas, filhos da puta!!!” que o traíram e mancharam a sua “ficha limpa”.

Um dia, ele cansou de reinar, pelo menos de reinar aparentemente. Não aguentava mais aquela sacanagem toda, aqueles pilantras todos – eram mais de quinhentos, querendo derrubá-lo, querendo destruí-lo, querendo a sua desgraça, quando então lembrou que era Deus e Deus tudo pode.

Lembrou que poderia colocar um fantoche qualquer no seu lugar, um poste, ou até mesmo, porque não!, a sua anta de estimação. Isso! ele pensou, com a sua astúcia refinada, com a inteligência que Deus lhe deu, melhor, que Ele se deu a si mesmo. Gritou para um empregado qualquer: chama essa anta do grelo mole, manda vir aqui agora mesmo, não sou de esperar por ninguém, nem pelo Papa nem por Obama! Vai logo, porra!, vociferou com a sua delicadeza habitual.

A anta veio. A anta tudo escutou. A anta viu o seu futuro dourado, logo ela, que fora uma anta de frente de batalha, que enfrentou os opositores numa guerra ferozmente, ela, a anta sofrida, torturada, maltratada, agora, tinha na sua frente, um presente de Deus, a sua remissão, chegara a sua vez, portanto.

Mas a anta não era tão anta assim. A anta tinha alma de raposa. Ela pensou: vou dar o troco, vou dar um toco no cotó!

Feitas as apresentações ao povo, a anta conduzida ao trono de imitação, pois o verdadeiro foi com o Rei cotó, com a promessa de que tudo continuaria do jeitinho como estava antes, ninguém era mais pobre, todos tinham casa e mesa farta, e assim sendo o amputado foi para seu retiro, de onde pensava estar tudo sob controle, como havia combinado com a sua subalterna, e então, como no sétimo dia, descansou, foi pescar no sítio do amigo, foi curtir uma praia no apartamento de um outro, dar umas palestras por aí, enquanto a anta governava leve e solta como uma andorinha.

O que sustentava o reino era uma mina de ouro, o ouro negro. Na mina, o rei cotó mandava e desmandava. Fazia o que queria. O Rei pensou: estou ficando velho, decrépito, barrigudo, careca, a língua cada vez mais presa, tenho que rapar essa mina o quanto antes, pensou com a esperteza que Deus te deu, ou seja, que Ele deu a si mesmo, pois Ele era o próprio Deus.

Mandou um mensageiro para o palácio totalmente dilapidado, pois levara as suas tralhas para o sítio do amigo quando o deixou, pois como Rei, tudo ali era dele, porra!, como dizia, sendo a mensagem muito clara: tirar tudo da mina, acabar com ela, dar uns trocados para os abestalhados que babavam o ovo da anta – não!, anta não tem ovo, tem grelo mole, então o grelo da anta.

Dito e feito. Mandaram ver na mina. Destruíram a mina, e logo ela, que era tida como a riqueza do reino, a pérola que a todos pertenciam, o orgulho da nação - do reino, na verdade.

Fizeram uma festa daquelas. Tomaram um porre homérico, de cachaça, é claro, pois o rei cotó não era chegado a essas bobagens dos nobres e burgueses, com seus vinhos avinagrados, suas champagnes borbulhantes – aquilo era coisa de viado!!!, vociferava o Rei cotó, o whiskie das high lands, coisa de fresco! dizia o “tudo pode”, o pai dos pobres, o Rei dos Reis.

Que se fodam esses otários! dizia o monarca de pijamas.

Tudo ia às mil maravilhas, até que num belo dia, um dia qualquer, daqueles de sempre, chega aos ouvidos de um guarda palaciano a notícia de que pegaram um súdito com umas moedas no cesto de roupas na beira de um rio.

Ele foi lá conferir. Era verdade. De onde vem esse dinheiro todo?, perguntou o soldado, tem mais dele circulando?, acrescentou à primeira indagação. O pobre homem abriu o bico. Contou tudo: tão saqueando a mina, neguinho tá levando tudo seu moço, disse ele com seu vulgar vocabulário.

O soldado, então, ficou curioso, saiu perguntando, falando com um aqui, outro ali, e levou o assunto ao seu superior, que não gostava tanto assim da anta, nem do Rei cotó, tinha umas lembranças antigas, amargas, uns pensamentos de revanche arquivados na memória há muito tempo.

O chefe levou o assunto ao magistrado, um sujeito simples, acanhado, com uma roupinha surrada, vivia nos cafundós de Judas, lá num cantinho do reino, um lugar que não chamava a menor atenção. Então foi escutando umas histórias, lendo uns papéis, fazendo conjecturas, até que descobriu toda a verdade.

Quando a anta soube do acontecido, já era tarde. O escândalo explodiu: a mina estava acabada, o ouro negro sumiu, escafedeu. E agora? Vamos ficar pobres outra vez? A nossa casinha, o nosso emprego, a escola dos nossos filhos, o hospital, tudo isso vai sumir, voltar a ser como antes? Mas – essa era grande questão, quem fez isso tudo, quem saqueou a nossa mina? Quem roubou a nossa riqueza?

A anta, tonta, sem saber o que fazer, vendo o seu reinado de araque desabar, entrou em colapso. As suas falas, já de há muito incompreensíveis, pareciam agora uma língua de um outro reino desconhecido, de Marte talvez, pois não se entendia nada do que ela arrotava daquela boca maldita, cheia de dentes tortos, berrando aos quatro cantos que tudo era mentira, intriga da oposição, que tudo estava bem, nada daquilo era verdade, a mina estava ali, à vista de todos, como sempre esteve.

No meio disso, o Rei cotó assistia a tudo de camarote, do trono dele, na verdade, lá do sítio do amigo gente-boa, pescando, tomando a sua pinga preferida.

Um assessor falou no ouvido da anta: temos que chamar o Rei de volta, urgente! Mas quem manda agora sou eu!, ela reverberou. Manda porra nenhuma, sua Excelência, baixando o tom o seu vassalo de estimação - aquele de fala mansa, cara de ressaca, o conhecido blue eyes pelas empregadas palacianas - quem manda nessa joça é o Rei cotó, o Deus, o Criador, o dono do teatro de marionetes.

Então a anta caiu em si, desceu do trono fajuto, tirou o manto rasgado, pensou em renunciar, mas desistiu da ideia e gritou bem alto: não renuncio jamais, isso é um golpe, é isso, um golpe sim senhor, e de golpe na minha vida de anta basta um, aquele que tive que enfrentar outrora, e em um gesto de humildade e de simultânea covardia, mandou chamar o Rei no sítio do amigão para resolver o problema, pois ela não sabia mais o que fazer.

Ele riu, gargalhou, se estrebuchou no chão, caiu de boca no chiqueiro, beijou os porquinhos de estimação, gritou para os céus com os olhos fixados no infinito: tá vendo aí, porra! Quem é que manda nessa merda? Quem é o salvador deste reino? Quem pode tirar aquela anta dessa encrenca? Eu, eu, eu, somente eu!!!!! Kkkkkkkkkkkkkkkk.

Mandou equipar a carruagem, emprestada de um amigão, tomou uns gorós antes de partir e se dirigiu para o palácio, levando, por precaução, o seu trono de estimação, pois não sentava em uma cadeira qualquer havia muito tempo. Deformidades do hábito, como a boca e o cachimbo.

Foi recebido com festa. A anta se derreteu em elogios quando o recebeu na entrada principal. Ele perguntou a todos os presentes: Quem sou eu, quem sou eu, quem sou eu? Colocou a mão em concha na orelha de abano e escutou: sois Rei, sois Rei, sois Rei!!!!

Combinaram que não seria justo sentar de vez no trono de estimação, trazido do sítio do amigão. Eu quero um cargo provisório, depois tomo seu lugar, decretou de imediato. A anta, sem problema majestade, Criador, apenas quero que sua Excelência me tire dessa merda toda. Deixe comigo!, disse o bufão. E assim foi feito.

Mas….., os parceiros não contavam com aquele magistradozinho, lá dos confins do reino. Ele apurou tudo, mandou uns ladrões para a cadeia, e o povo ficou do seu lado, dando início a uma revolta no reino do Rei cotó e da sua anta de estimação.

A turba foi tomando vulto, mais gente saindo das suas casas, que não eram mais suas, os desempregados, que eram muitos e não tinham mesmo o que fazer, também se juntaram à multidão, e se postaram na frente do palácio pedindo explicações sobre o ouro negro roubado da mina. Queriam explicações plausíveis, somente isso.

Aparece na janela, porra! esbravejava o Rei cotó para a anta. Ela, apavorada, dizer o quê?, eu nem sei falar nada direito, imagine agora, com esse povo todo aí na frente? Fala qualquer coisa sua imprestável, diga que não sabia, que é tudo mentira, sei lá, bota a culpa no juizinho, sua bosta!

Ela, toda tremendo, com a cara empapada, gaguejando, disse: meu povo, é tudo mentira, isso é golpe baixo, a mina está lá, no mesmo lugar, o ouro está lá, no lugar de sempre, esse juiz é um mentiroso, tudo está indo às mil maravilhas, inclusive o Rei cotó está aqui para nos ajudar.

O povo gritou, esbravejou, não acreditou em uma única palavra. Ela virando para dentro, e agora, o que faço?, ele, sei lá sua imprestável, diz qualquer coisa, inventa uma mentira, diz que vou ser ministro, fala com os magistrados, vá pra puta que a pariu!

Ela em desespero, disse: calma rapaziada! O cotó voltou, ele vai resolver essa bagunça toda, tudo vai voltar ao normal, vocês vão ver!

A vaia só fez aumentar o volume. Ovos e tomates podres foram jogados na janela. Ela, apavorada, perguntou: e agora? Que faço meu rei? Ele: se foda, se arrombe, sei lá, me dá aquele papel, vou limpar a minha bunda, tô me cagando todo sua filha da puta! Se vira sua anta! Eu vou para a Itália, minha mulher tem cidadania, meus filhos também, você que se foda!!!

A anta não sabia o que fazer. Chama o advogado geral, manda ele resolver a parada lá com os magistrados, vai lá, fala com eles, promete alguma coisa, não deixa essa merda feder mais ainda. Vai, vai, sai da minha frente! Ficaram esperando, ela cabisbaixa, o Rei cotó sentado no trono, na latrina desta vez, pensando, lendo o livro de cabeça para baixo, tentando imaginar uma solução. Me passa o papel, sua anta, vou assinar esta porcaria e a gente resolve tudo. Devolveu o papel com um risco amarronzado, fedorento, imundo. Ela pegou com nojo e perguntou: o que é isso? E ele: não era para usar quando necessário? Pois então, usei. Isso aí é minha assinatura!

Problema resolvido, ela pensou alegremente. Chama o advogado geral, leva lá para os magistrados, mostra a eles, tudo certo, tudo volta ao normal.

Os magistrados disseram: com todo respeito, este alfarrábio que se nos foi apresentado exala um aroma tão insuportável, uma fragrância tão desagradável, que não nos parece, salvo entendimento em contrário, que seja um legítimo papel higiênico, pois já tivemos alguns destes paradigmas documentos em outros processos em estado mais minimamente críveis e com odor de melhor qualidade. Portanto, diante do exposto, recusamos esta prova como válida para o seu desiderato primevo. Indeferido, e leva isso logo daqui nobre causídico, o cheiro está deveras intolerável, disse o relator.

Atolemado, boquiaberto, o advogado geral voltou para palácio, cabisbaixo, trêmulo, sem saber o que falar e como enfrentar o Rei e a anta de estimação. O clima era de apreensão. Uma nuvem carregada pairava no ar daquele salão. E então, perguntou a anta, o que disseram os magistrados? Disse o advogado geral: o pobrema, majestade, é que eles não engoliram o papel assinado pelo Rei, o cotó. Disseram que cheirava mal.

Então, num arroubo de ira, gritou o Grande amputado: o quê? Aqueles acovardados, ingratos, sacanas, estão a me enfrentar? Eles não sabem com quem estão falando! Eu sou o Rei cotó, eu sou o Deus deste lugar! Eu sou aquele que tudo pode, que pode tudo, que fode com quem se mete em meu caminho! Eles vão ver! Eles vão pagar caro! Vou falar com meus aliados! É guerra! Agora é guerra! Vamos à luta cumpaêro!

A anta se mijou toda. O advogado geral se borrou na hora. Os presentes ficaram atônitos com aquela explosão. O povo ficou assustado com a notícia: guerra? Mas, e a verdade, como ela fica? Somos roubados e ainda vamos nos matar por isso? Não, nada disso, não vamos nos matar por esse reizinho de meia pataca! Vamos ao magistrado, ver o que ele diz.

O magistrado singular nada pôde fazer. Os magistrados superiores tomaram para si os papéis e o impediram de se manifestar sobre o assunto. Mas como? perguntavam as pessoas. E agora, quem irá nos defender?

Essa história para por aqui. Não sabemos o que irá acontecer e como será o seu final. Será que o Cotó, o ilusionista, o criador de casos, sairá vencedor? Como será o final da anta? Continuará desempenhando seu papel de títere, com os barbantes ajustados nos seus membros da forma adequada?

Quem viver verá. Mas a história mostra que quase sempre os tiranos dela são expulsos e saem pelas portas dos fundos, ou são retirados de algum buraco e despedaçados pelos insurretos, como aconteceu com o sujeito iraquiano.

Espero poder contar o final daqui a algum tempo a meus netos, se os tiver, ou para quem tiver paciência de ouvir algo tão sem pé nem cabeça que só pode mesmo parecer uma história inventada e nunca algo que ocorreu na vida real.


(René Ribeiro, Procurador do Estado)