Duas audiências na Comarca de Barra

“Canta Canta, minha Gente.
Deixa a tristeza pra lá.
Canta forte, canta alto,
Que a vida vai melhorar.
Que a vida vai melhorar...”

(Martinho da Vila)

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Com esse samba do Martinho da Vila a me inspirar, começo esse conto sobre a aventura que foi viajar até a Comarca de Barra, e lá se vão mais de vinte anos.
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Com a entrada em vigor da Lei Estadual 6677, de 27 de setembro de 1994, o Estado da Bahia extinguiu os contratos de trabalho com os seus servidores celetistas, deixando assim de recolher o FGTS, nas respectivas contas vinculadas. Com isso, o Sindicato dos Professores ingressou com diversas reclamações trabalhistas plúrimas alegando irregularidade nos depósitos fundiários e pedindo a devida complementação.

Dentre outras tantas comarcas em que estas reclamações tiveram curso, ficou na lembrança as duas viagens que precisei fazer para representar o Estado da Bahia nas audiências, perante o Juízo da Comarca de Barra.
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A Comarca de Barra tem uma longa história. Segundo o Wikipédia, o povoamento da região surgiu a partir de uma fazenda de gado, pertencente à Casa da Torre, então chefiada pelo 2º Francisco Dias de Ávila Pereira, entre 1670 e 1680. Posteriormente foi elevada à categoria de povoação, então integrando a Capitania de Pernambuco. Em 7 de julho de 1824, a Comarca do São Francisco foi desligada de Pernambuco como punição pelo movimento separatista conhecido como Confederação do Equador, passando à jurisdição de Minas Gerais. Em seguida, no dia 15 de outubro de 1827, passou a pertencer em definitivo à Bahia.

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Pela sua localização geográfica, tornou-se ponto de passagem obrigatório para quem se dirigia ao sertão do São Francisco, vivendo grande efervescência comercial e social entre 1891 e 1912. Em 1902, o vapor Saldanha Marinho começou a trafegar regularmente entre Pirapora, Minas Gerais, e Juazeiro, Bahia, passando por Barra, o que reforçou o comércio da região. Somente em 1998, Barra integrou-se à malha rodoviária brasileira com a ligação da cidade à BR-242, a rodovia federal Salvador - Brasília.

É na cidade de Barra que o Rio Grande, que nasce na Serra Geral do Goiás, no Município de São Desidério (BA), e atravessa a Bahia em direção nordeste, se encontra com o imponente Rio São Francisco.
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O acesso à Comarca de Barra, no entanto, sempre foi um estorvo para quem precisasse se deslocar até este velho lugarejo, por terra, razão porque as duas viagens que fiz, foram verdadeiras aventuras, o que me deu uma pálida ideia do que significou o seu desbravamento.

Na primeira viagem fui até Irecê – BA, capital do feijão, onde pernoitei, pois a audiência seria no dia seguinte pela manhã e a orientação é que eu poderia depois ir até Xique-Xique - BA, já nas margens do Rio São Francisco, e então tomar uma embarcação e descer rio abaixo. Essa alternativa era a única disponível, pois fomos informados que o trecho entre Xique-Xique e Barra estava intransitável em razão de ser época de chuva.
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A descida pela manhã foi rápida, estávamos no sentido da correnteza do rio. O retorno, no entanto, foi mais demorado.
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Terminada a audiência fui almoçar e logo no início da tarde, por volta das 13h30, rumei ao porto da cidade.
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Cinco horas e alguns minutos mais, ouvindo o barulho característico da embarcação, na sua luta inglória contra a correnteza do velho Chico, vendo a paisagem que emoldurava o curso do rio, estava de volta à cidade de Xique-Xique, e já era noite.
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Voltei a Irecê com a ideia de que deveria haver um outro percurso menos demorado e arriscado para chegar à velha Barra.

Na segunda oportunidade, então, me informei a respeito e veio a orientação de que indo até a cidade de Ibotirama, havia uma estrada de 140 km que dava acesso à cidade de Barra, e então para lá me dirigi, esperando que a viagem fosse menos demorada.
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Ledo engano. A audiência foi designada para as 14h30 e logo pela manhã, por volta das 7h30 estava de partida. A rodovia, no entanto, estava em total abandono, e os 140 km somente foram cumpridos nas mesmas 5 horas de antes.

A audiência chegou a ser cômica. Quando o Juiz me ouviu falar que viera por Ibotirama e deveria retornar naquele mesmo dia, senti que houve um reboliço.

É que as testemunhas arroladas não tinham sido intimadas, e o Juiz para ser prestativo, pediu que fossem imediatamente contatadas por telefone, e cientificadas que ele mesmo estava solicitando a presença de todas no Fórum, para serem ouvidas o mais rápido possível.

A audiência seguiu em ritmo acelerado, pois a todo momento o Juiz dizia que tinha que ser assim pois o Procurador tinha que voltar pela estrada para Ibotirama. De fato, a matéria era muito mais documental e as audiências eram designadas cumprindo o rito das reclamações trabalhistas. Percebi nos olhares a quase comiseração de todos.
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Com todo o corre-corre, por volta das 15h30 estava de volta a Ibotirama. A viagem durou um pouco mais que as 5 horas da viagem matutina, pois logo veio a noite, com ela a escuridão, e salvo engano, somente cheguei ao Hotel em Ibotirama, após as 21h. Realmente uma aventura e tanto. Graças a Deus, não precisei retornar à Comarca da Barra, pois somente para pagar pecados graves é que alguém pode cumprir esse itinerário.

Soube que somente em 2012 foram entregues totalmente asfaltados os trechos que ligam Xique-Xique a Barra e esta a Ibotirama.
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O percurso agora, para os colegas que precisarem se deslocar até Barra, deve ser bem mais agradável, e no final vale a visita, pois há interessantes registros da arquitetura colonial que merecem ser vistos.

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Este texto é de total responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, caso exista, a opinião da Associação dos Procuradores do Estado da Bahia.