O Vestido Tubinho

Título: O Vestido Tubinho
Data: 26/06/2020

O tempo vai se tornando algo cada vez mais raro e caro para todos nós. Essa percepção é geral. Mas comparar a vida da gente com um vestido tubinho é um arrematado exagero, ainda que admitamos que ela esteja ficando um tanto curta e apertadinha.

Era um daqueles dias em que tudo parecia apontar para o desastre das horas contadas, em que eu teria de me mover pelo fluxo contínuo de compromissos e aborrecimentos em que se tornara Salvador. Logo pela manhã, uma audiência. À tarde, uma reunião cansativa de trabalho com uma pauta de quinze itens.

Arrastava-me pela manhã em direção ao Fórum Ruy Barbosa, quando um senhor barbudo e maltrapilho vinha conduzindo em sentido contrário ao meu um carrinho desses de supermercado, carregado de caixas de papelão, tábuas de compensado, garrafas pet e outros materiais recicláveis. Apesar de todas as cautelas que adotei, de nada adiantou o cálculo preciso que fiz. A certa altura, o estoques ambulante de bugigangas desviou subitamente do seu curso e atingiu o retrovisor direito do meu carro. Nada de grave no fato em si, mas funcionou inexplicavelmente como um sinal para que um congestionamento imediatamente se instalasse por toda a via.

Comecei a manhã penando. Quando subia a ladeira da Fonte de Nova, oficialmente intitulada de Ladeira da Fonte das Pedras, o relógio no painel do veículo marcava 10:40 h. A audiência estava marcada para as 9:30. Mas, calma! A hora a mais estava por conta da permanência do horário de verão anterior, finalizado em 26.02. Feito esse desconto, tinha também de abater os 15 minutos de reserva com que me resguardo das eventualidades que têm sido recorrentes na vida descontrolada da urbis. Eventualidades rotineiras! Pense num absurdo... Rigorosamente, estava apenas a cinco minutos da hora marcada!

Os motoristas do fundo da fileira rabilonga repicavam as buzinas, sempre que o sinal vermelho substituía o verde no semáforo instalado no alto da ladeira. Um tanto apreensivo, acompanhava à minha frente o carro prata dirigido por uma jovem ruiva de óculos escuros, e que parecia hesitante em avançar.
Mentalmente, fazia a contagem regressiva até o instante em que consegui me desvencilhar de um taxista moroso que se postara teimosamente à minha frente até a metade do trajeto da rua Santa Clara. Um encosto típico do trânsito de Salvador.

O veículo prata e a bela motorista que o conduzia desapareceram na curva da rua do Carro, entrementes eu tentava escapar do taxista pirracento. Redundância... Só experimentei um sentimento de alívio quando percebi que o caminho até o estacionamento da OAB estava completamente livre. Enquanto pisava fundo no acelerador, refazia os cálculos do horário: um minuto era o que faltava! Se não quisesse ter um dia perdido de maus humores e ironias pelo atraso, teria de largar o carro com o manobrista e sair em disparada para a audiência. Embora, tenha como regra de segurança a não entrega do meu carro a manobristas, a situação recomendava a adoção da medida excepcional. Foi, portanto, com a pressa de quem queria por em andamento esse plano B que me deparei com o carro prata parado diante da entrada do estacionamento...

A bordo, estática ao volante, com toda as paciências do mundo, estava a ruiva “supramencionada” com uma disposição, pelos menos era o que parecia, de não arredar os pneus do carro dali até que fosse publicada no jornal a notícia de que eu perdera a audiência! Mandei duas buzinadas em direção ao implicante obstáculo. Reagindo em slow motion, o vidro fumê da janela da motorista foi baixando lentamente. Uma odiosa, esguia e bem cuidada mão branca emergiu do interior do veículo como se flutuasse. Pedia paciência.

Notei os dedos longos e as unhas esmaltadas em tom vibrante de vermelho. O dedo indicador esquerdo assumiu a posição típica do j’acuse e foi baixando em direção ao botão que aciona a cancela de entrada. O suspense era tanto que eu percebi o exato momento em que o dedo alvacento e blasé fez pressão sobre o botão preto em destaque na caixa amarela. Supus ter ouvido o rangido da mola interna reagindo em sentindo contrário, confirmando mais uma vez a mais conhecida de todas as Leis de Newton. Instalou-se uma luta provisória entre a vontade humana e a resistência das coisas. Uma eternidade se passou, até que a vitória do homem sobre a máquina sobreviesse: o fluxo de energia elétrica reativado, o despertar do motor interno a produzir movimentos nas engrenagens até que o equipamento eletrônico por fim veio a cuspir timidamente um retângulo branco de papel. A trave horizontal erguera se inopinadamente. Pensei: “É agora!” e acelerei.

Foi questão de segundos. Aquela mão preguiçosa tentava prender a quadrícula de papel entre o polegar e o indicador. Até que ela caísse, não antes sem dar várias voltas no ar, e arrastar-se pelo chão até se prender na parte de baixo da roda traseira esquerda do intransponível objeto prateado. A mão branca ficou suspensa no ar para fora da janela, como se com isso estivesse justificando o ocorrido.

Resolvi mandar mais duas buzinadas. A ruiva, finalmente, reagiu. A porta do carro se entreabriu levemente para que ela, sem saltar do veículo, tateasse as proximidades do piso da entrada do estacionamento, em vã tentativa de resgatar o ticket evasivo.

Não houve jeito, porém. Vencida pela exasperação que atingia os demais integrantes da fila de veículos que crescia, a ruiva resolveu fazer uma suprema concessão: saltar do carro para recuperar o ticket.

Foi aí que eu vi um belo rosto feminino, que não escondia um sorriso ainda que um tanto amarelo, porém o suficientemente eficaz para ampliar o meu tempo em mais cinco minutos. O corpo bem feito, delgado, estava encoberto por um justo vestido tubinho marrom, desses talhados em tecido sintético e flexível, um tanto acima dos joelhos esbeltos. Não era uma mulher muito dada ao sol...

Mandei-lhe uma fraca buzinada, que funcionou quase como um pedido de desculpas. O coro das demais que se seguiram à primeira desautorizou completamente a minha condescendência para com a ruiva, que nesse momento flexionava as pernas brancas semi-expostas para retirar o ticket preso na roda esquerda traseira. E à medida que abaixava, o vestido tubinho ia se recolhendo para cima, proporcionando uma visão cada vez mais panorâmica e luminosa.

A luta entre a mulher e a rebeldia das coisas perdurou por mais alguns minutos. O vestido, de nada adiantava segurá-lo pelas pontas. Não fora projetado para pessoas que ajoelham com frequência ou que tenham de apanhar objetos no chão. Sua índole antigravitacional tendia a recolhê-lo à região da cintura.

Finalmente, avaliando com gravidade a situação, a ruiva lançou um último olhar desesperado aos seus observadores, antes de entregar-se ao sacrifício. Fez tudo muito rápido: sem dar atenção ao vestido rebelde. Agachou-se nas proximidades da roda traseira do carro e, usando os dedos como pinça, trouxe neles presa a papeleta fugitiva. Via-se pelo brilho nos olhos dela o tamanho da satisfação. Aqueles que souberam aguardar, com paciência ou não, sentiam-se recompensados pela visão maravilhosa que tiveram. Só faltaram os aplausos.

Epílogo:

Menos intranquilo, estava no hall de entrada do segundo andar do Anexo do Fórum Ruy Barbosa, aguardando o pregão da audiência que estava atrasada em 10 minutos, quando sua excelência, o juiz, chegou com ar de preocupado. Com certeza, fora também alcançado pelo engarrafamento que a ruiva involuntariamente provocara na rua de acesso ao fórum e que se irradiou pelas adjacências.

(Extraído do livro "O Maior Mentiroso do Mundo e Outras Estórias', no prelo)


Luiz Cláudio Guimarães, Procurador do Estado